Rua Carmelam Dutra, no.295 - Mogi das Cruzes
11 2500-1318
@espacolermogi

“O inverno da nossa desesperança”, John Steinbeck

” O inverno do nosso descontentamento foi convertido agora em glorioso verão por este sol de York, e todas as nuvens que ameaçavam a nossa casa estão enterradas no mais interno fundo do oceano”

São com estas palavras que Shakespeare inicia a cena I do Canto I de sua peça ” Ricardo III”, um dos dramas mais icônicos do escritor,

” …eu, que privado sou da harmoniosa proporção, erro de formação, obra da natureza enganadora, disforme, inacabado, lançado antes do tempo para este mundo que inspira (…) “, traz em paralelo com Hamlet, um protagonista extremamente exigente e ardiloso que carrega em suas deformidades aparentes, a que carrega na alma.

E, para compensar sua diminuição junto aos demais, utiliza-se de esquemas ardilosos e sutis para prejudicar os mais próximos, até mesmo aqueles que são seus aliados, pelo risco, e, é sempre internalizando e conversando com o leitor é que conseguimos conhecer seus objetivos e trajetória. Mergulhai, pensamento, fundo, fundo da minha alma.”

Mas, qual a conexão entre o último romance de Steinbeck, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, do ano de 1962, e, Shakespeare ? Eu diria, tudo. É a maestria de um exímio contador de estórias, capaz de nos transportar a derrocada de uma cidade antes próspera, com sua secura, seu pó, seu desgaste, em perfeita sintonia com a própria derrocada do personagem principal, Ethan Hawley. Alterando a narrativa do livro vezes em primeira pessoa, vezes nas palavras de um narrador, conhecemos o sobrevivente de uma família antes próspera, tendo o protagonista sido criado com todas as belas estórias e aventuras de seu avô, proprietário de navios de caça às baleias.

A realidade vivida é totalmente transformada quando retorna da guerra onde seu pai, criado em família abastada, perde toda a riqueza da família em investimentos sugeridos pelo gerente do banco local, malogrados, tornando-o extremamente pobre e endividado.

página 61. ” Meu pai era um tolo gentil, bem informado, mal aconselhado e, às vezes, brilhante. Sozinho, perdeu terras, dinheiro, prestígio e futuro.”

O filho, volta para essa realidade e de promissor dono da cidade, torna-se empregado de um empório de propriedade de um ” carcamano” Marullo. Sua família e sua alma carregam o peso da derrocada, de um período de glória passado que não volta mais. E começa a entender que,

página 29.” _ Eu tive minha oportunidade, Sr Baker…mais oportunidades que bom senso. Não esqueça que, logo depois da guerra, esta mercearia me pertencia. Tive de vender meio quarteirão de propriedades para adquirir estoque… com o último dinheiro que nos restava.”

Na ânsia de resgatar o nome e o patrimônio da família, o filho volta e ao tentar resgatar, sabendo terem sido os ascendentes comerciantes e em sua ingenuidade acredita que tudo correrá bem.

página 30. ” _ Eis aí o que não compreendo, Ethan. Qualquer pessoa pode falir. Mas o que não percebo é por que razão você permanece falido,…(…)

_ É claro que o senhor não compreende. É uma coisa lenta. Corrói as entranhas da gente.”

E, não há como reagir. A esposa Mary Hawley, entrega-se à sonolência da conformidade. Seus filhos já apresentam a gana de sobreviventes, exigem do pai o restauro do patamar de glória e riqueza, e Ethan percebe que somente utilizando-se de estratégias e ardis será capaz de reverter a situação.

O livro inicia-se com os preparativos para o feriado da Sexta-Feira Santa que simbolicamente representa um período de reflexão, inspirando a buscar a superação das dificuldades e a perseverança em seus objetivos.

E a partir de insights de sua posição agora conscientemente precária,

página 92.” (…) Mas aconteceram duas coisas provando-me que pelo menos duas mudanças profundas, subterrâneas, estavam a processar-se em mim.’

Inicia a observar outros meios de enriquecimento, por meio de ardis, um deles é a de aproximar-se do funcionário do banco local para extrair informações privilegiadas, desde abertura de fechadura até localização do cofre e agenda de recebimento de valores.

E até, de interesses dos comerciantes e políticos da cidade, numa área mais distante que, hoje abandonada é capaz de instalar um aeroporto, trazendo desenvolvimento e novos negócios para a cidade, mas pertencente a seu amigo de infância, Danny.

Danny é um alcoólatra que não tem qualquer interesse, apenas, destrói-se um pouco a cada dia.

página 130. ” Estar vivo é ter cicatrizes.”

Não tem qualquer interesse em viver nesse mundo, mata-se cada dia um pouquinho, e, Ethan o ajuda, deixando dinheiro considerável para que possa embebedar-se mas, só depois de assinar um documento doando o imóvel desejado por todos.

Mas, o uso de subterfúgios e esquemas só funciona realmente na cabeça de quem planeja e não exatamente nas pessoas ao seu redor.

E é em Margie que Ethan despreza, quem reflete seu novo posicionamento no mundo, diz,

página 234. ” Margie Young-Heart era uma mulher atraente, bem informada, inteligente – tão inteligente que sabia quando ocultar sua inteligência.”

E,

página 235. ” Margie conhecera muitos homens, quase todos perseguidos por um sentimento de culpa, feridos em sua vaidade ou desesperados, de modo que, como caçadora profissional de vermes, sentia desdém por suas presas.”

E então,

página 236. ” O camundongo ia adquirindo juba de leão.”

E é aí que as tramas começam a se realizar, o proprietário da mercearia é deportado, após denúncia, “vendendo” a mercearia a Ethan, e, a notícia de que o filho Allen ganhou uma menção honrosa por uma redação numa concorrência nacional, recebendo um convite para aparecer na televisão.

Ethan fica perplexo, já que o filho não tinha histórico, sendo o pai quem o auxiliava, não tendo dessa vez, visto qualquer rascunho, Já sua filha Ellen, como diz, página 329, ” se sentiria abalada e corroída de inveja, procurando, mesmo, alguma maneira de reduzir ao mínimo a grandeza do irmão. Mas enganei-me. Ela converteu-se em arauto da glória de Allen.” E tanta candura era apenas uma maneira de induzir à erro sua família, já que, através de um cartão postal do Empire State Building, anônimo expedido em Nova York _ onde irmão e irmã estavam passeando levados por Margie, o canal de TV foi informado de que a redação, na verdade, é uma cópia de trechos de vários discursos, já publicados, e, que não há nenhum trecho inédito. E assim, toda festa e celebração junto à família e toda a comunidade teve de ser retirada já que sua participação no programa de TV e o próprio prêmio seriam cancelados.

Quando confronta o filho, não há um sinal de arrependimento, pelo contrário, descoberto ter a irmã delatado, e,

página 368.” _aquela delatora nojenta !

_ Você ouviu tudo?

_Ouvi o que aquela delatora fedida fez.

_ E ouviu o que você fez?

O camundongo acuado atacou:

_E que tem isso? Todo mundo faz isso. É assim que se chega à bolada.

_Você acredita nisso?

_ Você não lê os jornais ? Todo mundo está por cima…Basta a gente ler os jornais. Para que a gente se sinta santo, basta ler os jornais. Aposto que, em seu tempo, você fez o mesmo, pois todo mundo faz. Não vou pagar por todo mundo. Não me importa coisa alguma, exceto o que aquela delatora nojenta fez.”

página 253.” Na verdade, crime algum é cometido, a menos que o criminoso seja apanhado.’

A vergonha de tudo o que sempre praticou e a derrocada da moral de sua família e espelhar em seu próprio filho, tramando e prejudicando outros em seu benefício, lhe resgata toda ética e moral perdida, e, escolhe que, não é aquele o mundo pelo qual vale a pena viver. Mesmo com apelo de sua filha, sabendo que se pai não retornaria, não é capaz de afastar toda vergonha.

Um final digno de uma estória de Steinbeck e, extremamente requintado o uso da peça de Shakespeare e o monólogo de Ricardo III, nos dá todo o sentido da trama e também da derrocada final, pela própria família.

Digno de Steinbeck mas agora com um viés mais poderoso que não é o das circunstâncias contra a pessoa, mas uma colheita de todas as ações perniciosas em conluio com Margie, com o Sr.Baker do banco, da morte de seu amigo Danny e receber a área desejada para o aeroporto e, mesmo, da postura da esposa, de seu filho e filha. A delação de Marullo. Excepcional, capaz de ser lido várias vezes, nos trazendo leituras cada vez mais profunda e rica.

Recomendadíssimo.

Há meses consegui comprar essa versão clássica do livro de John Steinbeck, publicado pela Civilização Brasileira, em 1972.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *